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Veronica Machado

Educação e Patrimônio Cultural

Atualizado: 16 de nov. de 2021

Estudo de caso da oficina de História para comunidade de Arrozal e arredores.

Além da pesquisa histórica e da oficina de patrimônio fui responsável pela criação da marca, do site do projeto e pela adequação da pesquisa contando as histórias do casarão ao design das lonas que cobriram o tapume durante a obra de restauração do prédio.


A partir da observação dos elementos arquitetônicos que compõem o sobrado identifiquei um detalhe do desenho original do gradil de ferro da varanda que remete a letra C de "Casarão". As cores da marca reafirmam sua identidade cultural, sendo o azul mais escuro a cor atual da pintura das janelas e portas do sobrado antes da execução do projeto de restauração; já o verde claro foi tom original encontrado nas prospecções arqueológicas.


Sempre digo que tive a oportunidade de realizar uma pós-graduação em patrimônio in lócus quando trabalhei, ao longo de 2014, com a comunidade de moradores de Arrozal. O projeto de restauração do Casarão Cultural de Arrozal foi realizado pela empresa BOA Arquitetura e em seu escopo houveram contrapartidas sociais importantes para todos envolvidos, dentre estas as oficinas de história, arqueologia, materiais construtivos, pintura entre outros. Eu ministrei a oficina de história e patrimônio junto com o professor Gustavo Pinto de Sousa e fizemos uma visita ao Parque Arqueológico de São João Marcos com os alunos.


De acordo com o desenvolvimento e dedicação, os moradores de Arrozal que participaram das oficinas tiveram a chance de compor o quadro de funcionários para a obra de restauração do prédio.


A proposta da oficina, desde o início, foi ouvir os moradores, pois eles têm muito a dizer sobre como vivem as histórias da sua cidade. Longe de desqualificar tudo o que já foi escrito sobre Arrozal, procurei incorporar a cultura local e oralidade como elementos decisivos na análise histórica da cidade. Com a pesquisa histórica finalizada apresentei aos alunos a documentação levantada para pensarmos juntos sobre o que havia sido produzido até então sobre a cidade e arredores (Rio Claro, Pinheiral, Piraí).

Após conversas sobre as histórias de Arrozal convidei o Prof. Dr. Gustavo Sousa para uma aula sobre escravidão no Rio de Janeiro. Na região do Vale do Café houveram ricas fazendas e uma enorme população de africanos que foram escravizados, portanto foi muito importante para a comunidade local conhecer esses dados e a violência pela qual muitos dos seus antepassados, provavelmente, sofreram.


A história do casarão de Arrozal e a história da família Souza Breves estão imbricadas desde o início. Neste sentido, considero importante falar um pouco sobre essa família que teve papel relevante na formação e desenvolvimento socioeconômico de algumas cidades do Vale do Café, tais como Arrozal, São João Marcos e Piraí.


A árvore genealógica da família é bem extensa, tendo o seu início com os portugueses Manoel Breves e Maria de José dando origem a Antônio de Souza Breves, o primeiro Breves a entrar no Brasil em 1784. Dentre eles, destacamos Manoel de Souza Breves provavelmente o responsável pela construção do sobrado de Arrozal e José de Souza Breves, responsável pela fundação de Santana do Piraí.


Apesar de extensa pesquisa não encontrei nenhuma informação relevante sobre Manoel de Souza Breves, tanto em relação a sua família e posses quanto a respeito da sua atuação em Arrozal. Ao contrário de Manoel, a história do seu irmão, o capitão-mor José de Souza Breves foi escrita por muitas mãos e diferentes olhares.


Conhecido como desbravador de terras das regiões de Arrozal, São João Marcos e adjacências, foi atribuído a ele e ao Comendador Gonçalves de Moraes (Barão de Piraí), a fundação da cidade de Santana do Pirahy. Entretanto não foi o título de desbravador de terras desta região e patriarca de uma extensa família que lhe conferiu tamanha fortuna, mas a inserção dos seus filhos na política imperial.


O poderio econômico dos seus filhos José Joaquim e Joaquim José de Souza Breves foi conquistado devido à produção do café, ao tráfico de escravos e ao acúmulo de terras. Segundo o controle interno das fazendas de Joaquim José e do inventário de José Joaquim, constatamos a existência de aproximadamente dez mil escravos e dezenas de fazendas no Vale do Paraíba Fluminense que chegaram a produzir 205.000 arrobas de café, em 1860, ou seja, 1,45% da safra total do país. O café oriundo das fazendas de São João Marcos, de Piraí e adjacências era enviado para o porto de Angra dos Reis cujo destino era o Rio de Janeiro.


O Vale do Café é repleto de histórias assustadoras de um período de extrema violência com homens e mulheres de diferentes nações africanas que foram escravizados nessas fazendas. Procuramos revelar dados estatísticos da entrada e distribuição das populações que foram escravizadas no Rio de Janeiro por meio de extensa documentação.


A fazenda do Pinheiro, de José Breves, se destacava entre as fazendas de Piraí, um dos municípios mais importantes da produção cafeeira. Pelo Pinheiro passaram vários viajantes europeus que se encantavam com o luxo desta construção. O jornalista português, Augusto Emílio Zaluar, foi um dos viajantes que esteve na fazenda no final da década de 1850 e evidenciou que a extensa casa que o hospedava era um palácio elegante, digno de qualquer grande cidade. Segundo o viajante, a riqueza e o luxo imperavam na construção, encontrou retratos do imperador e da Imperatriz, representando o apego do comendador à ordem do Império.

Já os viajantes Luis e Elizabeth Agassiz, em meados de 1860, apontam para a numerosa população de escravos da fazenda, cerca de dois mil, bem como da estrutura interna de funcionamento parecida com uma pequena cidade: farmácia, hospital, cozinhas para hóspedes, capelas, salas de concerto, escola, banda de música composta por escravos da fazenda.


Em contraponto, Luis e Elizabeth Agassiz também estiveram na fazenda da Grama, de Joaquim Breves, e se depararam com hábitos bem diferentes. “Enquanto José parecia definir a experiência do cativeiro, mostrando aos seus visitantes uma fazenda com hábitos culturais próximos a modernidade da época, Joaquim não se importava nem um pouco com o característico universo escravista, pelo contrário incentivava sua perpetuação por acreditar na longa continuidade da escravidão”.

Um breve passeio por São João Marcos (1739-1940), a cidade apagada do mapa do estado do Rio de Janeiro.


Justamente pela representatividade histórica da cidade, o conjunto São João Marcos foi tombado pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, hoje, IPHAN) em 1939.


No ano seguinte, por incrível que pareça, o município foi destombado por decreto do presidente Getúlio Vargas sob o argumento que o mesmo deveria ser desocupado e demolido para a construção da Usina de Fontes Nova, até hoje em funcionamento para aumentar a capacidade de armazenamento do reservatório de Ribeirão das Lajes.


No site de Celso Cerqueira encontrei a melhor explicação para o apagamento de SJM:


"Em 1939, uma reportagem de O Globo informava, com entusiasmo, que a Light comprara 78 fazendas e algumas casas da cidade, pretendendo adquirir toda a área de São João Marcos para inundá-la. Era o começo da campanha a favor da expansão da represa. A notícia das verdadeiras intenções da companhia surpreendeu os moradores de SJM, que iniciaram um desesperado movimento por socorro.


De um lado, a Light, a grande imprensa e os governos estadual e federal queriam destruir a cidade; de outro, o povo queria preservá-la. Quando tudo parecia perdido, os moradores ganharam um apoio inesperado: o departamento cultural do Estado, representado por Rodrigo Mello Franco de Andrade, indicou a cidade como "monumento cultural" e exigiu a sua preservação.


A questão repercutiu na imprensa fluminense e, no mesmo ano, o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, tombou a cidade. Classificada oficialmente como "raro exemplo intacto de conjunto de arquitetura colonial".


Entretanto após a demolição e inundação do município, pela Light, para surpresa da empresa e do Brasil, o erro de cálculo ficou evidente quando as águas baixaram deixando à vista a destruição desnecessária de uma relíquia histórica.

Ruínas da casa do capitão-mor, em 2014.

Talvez para recompensar o prejuízo, a Light resolveu criar o Parque Arqueológico de São João Marcos, em 2008,conforme explicam: "Em 1990, a Ponte Bela e as ruínas do centro histórico de São João Marcos foram tombadas pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) e, em 2008, toda essa história começou a ser redescoberta e valorizada com a construção do Parque Arqueológico e Ambiental de São João Marcos".


Vale a pena assistir o vídeo Cidades Invisíveis, belo documento produzido pelo INEPAC sobre o apagamento de diversas cidades e histórias: https://www.youtube.com/watch?v=oiGOoeTr-Qg

No percurso de ônibus de Arrozal para São João Marcos, atual Rio Claro, passamos por diversas ruínas de fazendas e ouvimos histórias assombradas de violência que teriam ocorrido naquelas construções. Chegamos no Parque Arqueológico em 2014, no calor das buscas arqueológicas e reconstrução de parte da iconografia arquitetônica do município tais como a casa do capitão-mor José de Souza Breves, depois passou para o seu filho Joaquim de Souza Breves (o rei do café).

A vantagem da maquete, acima, é ter toda documentação sobre a cidade disponível nos arquivos públicos :)


Difícil entrar no Parque e não ter os pelos arrepiados, não por fantasmas, mas pelo descaso que as autoridades governamentais têm com o nosso patrimônio cultural. A culpa sempre vai para o povo alegando que o mesmo não tem memória. A minha experiência com pesquisa, educação e escrita sobre o patrimônio tem mostrado que o que falta são mais iniciativas de valorização dos bens materiais e imateriais.


Contudo para que isto aconteça é fundamental a participação popular nos processos decisórios sobre qual uso um prédio antigo deve ter hoje, no tempo presente. Além, é claro, de incluir o debate sobre patrimônio cultural nas disciplinas das escolas e universidades.


Um bom exemplo de gestão participativa é a iniciativa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro com a Câmara Municipal de Petrópolis no desenvolvimento do projeto Palácio Amarelo: Plano de Gestão e Preservação. A proposta consiste no Planejamento Estratégico Participativo (PEP) para a Preservação do Palácio Amarelo de modo sistêmico e integral, a partir de três eixos de ações: Eixo 1 – Infraestrutura, Eixo 2- Comunicação e Educação e Eixo 3 – Fortalecimento Institucional.


Voltando a nossa oficina e concluindo o texto deixo três atividades desenvolvidas com os moradores de Arrozal como sugestões para refletir sobre o patrimônio com a comunidade.

Na primeira, pedi aos moradores que me mostrasse a cidade, mesmo depois de tanta história, eu tinha certeza que não a conhecia bem. Realmente havia muito a conhecer tanto para mim quanto para eles.


Na segunda, fizemos uma visita ao Museu do Negro no Casarão, em silêncio, para que pudéssemos ouvir os sussurros do tempo representados pelas grossas paredes do prédio e pelos vestígios da cultura afro-brasileira.


Por fim, na terceira, sentamos em roda para nos conhecer sobre outra perspectiva, através da memória afetiva. Uma experimentação cognitiva do patrimônio por meio de algum bem material que temos em casa (algum objeto cuja significação só você sabe dizer).

Nesses encontros vivenciamos o que pode ser o entendimento do patrimônio, do individual para o coletivo, de forma lúdica e poética, como deve ser sempre a vida.


Oficina e texto de Veronica Castanheira Machado

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